sábado, 22 de setembro de 2012


Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG - Volume 1, n. 7 – Outubro, 2010
Eternamente estrangeiros: judeus na Inglaterra do século XI no romance de Walter Scott
Eternally foreigner: XI Century English Jewish in Walter Scott romance
Ethel Mizrahy Cuperschmid*
Resumo: O presente artigo discute a representação de personagens judeus do romance histórico Ivanhoé, de Walter Scott. Durante a Idade Média, a comunidade judaica na Inglaterra estava sob a proteção de nobres e também à mercê de taxações arbitrárias, bem como de leis discriminatórias. Até que ponto a obra de Walter Scott contribui para desvendar esse universo da diáspora? Sua narrativa reforça estereótipos ou apenas ilustra ficcionalmente uma realidade onde as diferenças eram sistematicamente marcadas?
Palavras-chave: Idade Média. Romance histórico. Judaísmo. Ivanhoé.
Abstract: The present article discuss Jewish characters of the historical romance Ivanhoé, by Walter Scott. During the Medium Age, the Jewish community in England was under the protection of noblemen and also at the mercy of arbitrary rates, as well as of discrimination laws. To what extent does Walter Scott's work contribute to unmask that universe of the exile? Does its narrative reinforce stereotypes or does it just illustrate fictionally a reality where the differences were systematically marked?
Keywords: Middle Age. Historic Romance. Judaism. Ivanhoé.
Introdução
Este artigo pretende estabelecer algumas conexões entre a realidade dos judeus na Inglaterra durante o século 12 e o romance histórico Ivanhoé, publicado em 1815 por Walter Scott (1771-1832). Até que ponto a ficção elucida um processo histórico? O público leitor consegue distinguir a criação artística da "verdade"? A obra de Scott reforçou preconceitos ou foi capaz de estabelecer uma imagem dos judeus sem estereótipos? A ficção é capaz de criar novos estereótipos?
Walter Scott é o maior responsável pelo sucesso dos conhecidos "romances históricos", as ficções que tomavam como pano de fundo a história política, os costumes e os personagens históricos. Logo no primeiro capítulo de Ivanhoé, Scott delineia o período histórico no qual se passa a narrativa, "cerca do fim do reinado de Ricardo I, quando o seu regresso do longo cativeiro" (2003, p. 7). O pano de fundo da história local é, assim, permeado pelas constantes querelas entre anglo-saxões e normandos. O movimento de comoção nacional são as Cruzadas.
Scott criou e divulgou uma imagem grandiosa e heróica de Ricardo I, que viveu grande parte da sua vida no continente europeu, falando francês. Quanto à língua inglesa, nunca demonstrou interesse em aprender. Quando ao retornar à Inglaterra, após pagamento de resgate cujo valor exorbitante abalou as finanças do reino, Ricardo permaneceu menos de um ano na ilha. Esse fato histórico, que parece desabonar o caráter heróico de Ricardo, no entanto, não é sequer mencionado na narrativa de Scott.
O limite histórico e cronológico do tema que trata da comunidade judaica na Grã-Bretanha encontra-se entre a Diáspora dos judeus na Inglaterra e de sua expulsão em 1290. Já a ambientação histórica do romance encontra-se, precisamente, no ano do retorno de Ricardo Coração de Leão (1157 – 1199) à Inglaterra, ou seja, 1194. Mas isso não impede o autor de mencionar fatos anteriores como o reinado de Estevão I (1096-1154), Henrique II (1133-1189), Guilherme II (1056-1100) e Eduardo III (1312-1377).
Scott cita algumas versões sobre Hobin Wood, utiliza-se de personagens literárias a título de comparação, como Shylock, de Shakespeare, por exemplo, e, no início de cada capítulo, trechos de outras obras literárias.  Além disso, faz uso de textos históricos para assim dar mais crédito à sua narrativa, como quando cita o historiador Henry, autor de Crônica Saxônia, para comprovar o uso, então corriqueiro, da tortura pelos barões e senhores feudais (2003:221).
Depois do regresso de Ricardo de seu cativeiro na Alemanha – para o resgate do qual os judeus tinham sido obrigados a contribuir três vezes mais que os ricos burgueses de Londres – iniciou-se uma organização em que, segundo Roth,
Nas principais cidades do país foram estabelecidas Arcas, onde deviam ser depositadas duplicatas de todas as dívidas. (...) Criou-se em Londres o Erário dos Judeus, que emitia juízos sempre que os judeus e suas dívidas viam-se implicados, ainda que indiretamente (...). Através de seu Erário, os judeus da Inglaterra medieval adquiriram uma organização sem igual em outras terras da Europa (ROTH, 1963:114).
O fato da riqueza dos judeus ter sido fundamental nos empreendimentos dos soberanos ingleses é comentado pelos personagens judeus do romance: "Sem o auxílio da nossa riqueza, não poderiam armar os seus exércitos para a guerra, nem comemorar as suas vitórias durante a paz. E o ouro que lhes emprestamos volta, depois, aumentado para os nossos cofres. Nós somos a erva que tanto mais cresce quanto mais é pisada"(2003, p.106).
Paradoxalmente, pode-se afirmar que as Cruzadas, ainda que fatais para os judeus, teriam, talvez, sido impossíveis, na forma em que se realizaram, se a elas não tivessem prestado assistência financeira.
Os judeus, não importa há quantas gerações seus ancestrais já estivessem fincados num lugar, eram sempre tidos como estrangeiros e intrusos. No romance de Scott, o personagem judeu possui uma função econômica indispensável na sociedade medieval. O financista, ou banqueiro, ou prestamista era igualmente necessário numa época em que prevalece uma economia monetária.
Mas, à medida que avança a Idade Média, a Igreja Católica começou a opor-se ao empréstimo de dinheiro a juros, sob quaisquer condições. O Código Mosaico, na verdade, tendo em vista uma vida agrícola e pastoril centralizada ao redor de pequenas vilas, proibira (Deuteronômio 23:19) a obtenção de lucros sobre quaisquer empréstimos feitos a um irmão. Já o Novo Testamento (Lucas 6:35) aconselhava ao fiel que "emprestasse sem esperar nada". Assim, lentamente, a Igreja adotou uma atitude de franca oposição à "usura", como era chamada, independentemente da taxa de juro cobrada.
Durante os séculos 11 e 12, momento em que os judeus não eram mais suficientes para desempenhar as atividades de financiamento que haviam assumido até aquele período, e ainda que os comerciantes cristãos não tivessem ganhado o destaque a que viriam alcançar posteriormente, os mosteiros desempenharam o papel de estabelecimentos de crédito (LE GOFF, 2005, p.77).
Segundo Cecil Roth, o apogeu da predominância judia no mundo da finança deu-se nos séculos 12 e 13, quando, por um lado, tornou-se completa sua expulsão do comércio e, por outro, os regulamentos contra a usura foram impostos com severidade (1963:93).
As cidades eram governadas pelas Corporações às quais não se permitia que os judeus se associassem. "E mais: frequentemente, o judeu era um estranho, tratado como tal, o que o obrigava a buscar a proteção do rei – o senhor de todos os homens, sem subordinação a outros, protetor tradicional do mercador e do estrangeiro (ROTH, 1963:95).
Qualquer que tenha sido o motivo, os judeus da Idade Médica eram considerados servos reais, servi camerae regis. Essa relação especial com a Coroa explica muito de sua posição e de suas atribulações. Eles eram os homens do rei, que exercia o mais rigoroso controle sobre todas as suas atividades, taxando-os arbitrariamente. Por uma consideração monetária, podia ceder a outrem todos os direitos que tinha sobre eles, individual ou coletivamente. Podia, ainda, confiscar suas propriedades ou expulsá-los do reino sem apresentar qualquer razão. O rei controlava os negócios internos das comunidades judaicas até os detalhes mais insignificantes. Acima de tudo, encontrava neles uma fonte de renda. Na Inglaterra, os judeus, que eram, no máximo, um por cento da população total, contribuíam dez vezes mais para com os cofres do Tesouro. (ROTH, 1963:97).
As comunidades judaicas inglesas nunca se refizeram inteiramente do golpe sofrido com os massacres de 1189-1190. João Sem Terra, seja por estar perenemente em necessidade, seja por ter simpatias naturais por causas impopulares, concedeu aos judeus, em 1201, uma ampla Carta de Liberdade, em troca de um subsídio vultoso. Porém, mais adiante em seu reinado, sua atitude mudou e ele começou a extorquir dinheiro dos judeus por meio de vários expedientes – do encarceramento em massa à tortura de indivíduos ricos, num gesto dos mais típicos de sua personalidade.
Ambientação
O cenário da Idade Média européia caracterizava-se pela predominância de florestas, umas poucas cidades e alguns domínios onde servos trabalhavam, monges rezavam, cavaleiros lutavam e nobres governavam. Mundo de refúgio, a floresta possuia seus atrativos. Para os camponeses e os pequenos trabalhadores, era uma fonte de ganho. Lá iam pastar os rebanhos, lá se encontra a madeira, indispensável numa economia por muito tempo pobre em pedra, ferro e carvão mineral. A floresta estava repleta de ameaças, de perigos reais ou imaginários. Era o horizonte inquietante do mundo medieval, cercando-o, isolando-o. Situava-se entre senhorios, entre países. De sua opacidade temível, surgiam os lobos famintos, os malfeitores, os cavaleiros saqueadores.
A Cristandade pareceu querer ultrapassar suas fronteiras, substituir a idéia de missão pela de cruzada, abrir-se para o mundo. Entretanto, ela mantinha-se fechada, uma sociedade que excluía o outro. Pertencer ao Cristianismo era o critério de valor e comportamento no Ocidente. A guerra, considerada um mal entre cristãos, era vista como um dever contra não-cristãos. A usura, proibida entre cristãos, era permitida aos infiéis, isto é, aos Judeus.
Rivalidades no interior das classes, conflitos, lutas de clã e guerras privadas enchem a história e a literatura. Estas inimizades violentas e coletivas, estes prolongados ódios, estes velhos rancores bem conservados são, aliás, privilégios de classe. Nas liças dos torneiros, batalhas em campo aberto, cercos aos castelos, os confrontos de famílias feudais atravessam toda a história medieval.
Na obra de Walter Scott as descrições de armaduras, armas e campeonatos são minuciosos... Os cavaleiros são altos, fortes, musculosos, figuras atléticas. Armaduras, cota de malha, luvas, polaina de malha, cinto e armas ofensivas. A comitiva contava com escudeiros e servos. As montarias indicavam a riqueza e importância do cavaleiro.
Personagens judeus
Este artigo privilegiará, em sua análise, os personagens judeus de Walter Scott para estabelecer uma possível analogia entre o romance – criação ficcional – e a realidade em que a comunidade judaica na Inglaterra estava inserida. As personagens judias aparecem no quinto capítulo. Isaac de York, designado como "judeu infiel" e "cão judeu", é recebido no castelo do nobre saxônio, pois, "se o céu tolerou uma nação inteira desses infiéis durante mais anos do que um leigo pode contar, nós também poderemos aturar a presença de um judeu por umas horas". (2003, p.45)
Isaac é descrito pelo narrador como "um velho alto e magro, de feições finas e regulares, "nariz aquilino, os olhos penetrantes e negros, a fronte alta e enrugada, os cabelos e as barbas longas e grisalhas". (2003, p.45)
Judeus são descritos como detestados pela plebe eivada de preconceitos e perseguidos pela nobreza avarenta e rapace. Por fim, Isaac de York "levava à cabeça um gorro amarelo, de feitio esquisito, imposto à sua nação para distinguir os judeus dos cristãos, e que ele, ao entrar, tirou com grande humildade" (2003, p.46) Aqui, o chapéu pontiagudo dos judeus, o pileum cornutum, adotado a partir do fim do século 13, constituiu uma fonte de inspiração suplementar para o autor.
O Quarto Concílio de Latrão, chefiado pelo papa Inocêncio II, introduziu a obrigatoriedade do uso de um sinal distintivo aos judeus. Na prática, o distintivo era um pedaço de pano amarelo ou escarlate – na Inglaterra, na forma de duas tábuas de pedra onde estavam gravados os Dez Mandamentos; na França, na Alemanha e noutros países, uma roda ou um 'O', assim chamada rotella ou rouelle.  De acordo com o historiador Cecil Roth, em alguns países, o simples distintivo não era considerado sinal identificador claro o bastante; por isso, acabou sendo obrigatório o uso de um chapéu de cor determinada". (1963, p. 99)
Em Ivanhoé, personagens judeus vestem-se com luxo de sedas orientais, uma espécie de vestimenta típica de seu povo, mas não há maiores descrições. O narrador no romance de Scott assim descreve Rebeca, filha de Isaac de York:
As suas formas delicadamente simétricas eram ainda realçadas por uma espécie de traje oriental, que ela usava de acordo com a moda adotada pelas mulheres do seu país. Um turbante de seda amarela combinava bem com a cor morena do rosto. (2003, p.75)
História e memória da dispersão
Se a memória do passado foi sempre um componente central da experiência judaica, o historiador não foi seu principal guardião (YERUSHALMI, 1992, p.18). Segundo Maurice Halbwachs, a memória individual é estruturada por meio do corpo social e memória coletiva é uma realidade social transmitida e sustentada pelos esforços conscientes e instituições do grupo.
Os judeus passaram a maior parte de sua história na dispersão. Entre os judeus, a memória flui por intermédio de dois canais: o ritual e a narrativa. Mesmo assim, a noção de que viviam na dispersão evidencia-se no romance, por exemplo, na afirmação de Isaac: "(...) desterrados e errantes como somos, o pior dos males que cai sobre nossa raça é que somos forçados a reprimir o sentimento de ofensa e a sorrir com humildade, em lugar de os vingarmos com coragem". (p.106)
Segundo Yerushalmi, os judeus "têm representado através de sua história uma fusão única entre religião e nacionalidade, e não podem ser estudados sob um só ângulo de tais dicotomias. (1992, p. 19)
Judeus registraram uma quantidade expressiva de pensamentos sobre a posição do povo judeu na história, sobre a história judaica, o exílio e a redenção.  Mas houve pouco interesse no registro da própria experiência histórica em andamento. Nas narrativas medievais judaicas, o passado considerado importante não era aquele que tivesse sido vivenciado pessoalmente, mas sim o passado remoto. A ideia era que o que havia acontecido em tempos mais antigos seria determinante para o que ocorreria desde então. Essa interpretação favorecia explicações fundamentais para o que ainda estava em curso.
Ivanhoé ocorre no período do movimento conhecido como "A Cruzada". Esse movimento religioso-militar ofereceu aos cavaleiros e aos camponeses do século 11 uma saída para o excedente populacional do Ocidente e o desejo de terras, de riquezas e de feudos no ultramar foi um fator de atração considerável. Em 1187, Saladino retoma Jerusalém e Ricardo Coração de Leão multiplica suas proezas durante a III Cruzada (1183-1192). O objetivo ideológico da Cruzada era a libertação da Cidade de Jerusalém do domínio dos "infiéis", notadamente muçulmanos. Mas os judeus também eram considerados a mesma categoria. Longe de abrandar os costumes, a violência da Guerra Santa levou os cruzados aos piores excessos, basta citar as perseguições contra comunidades judaicas na rota até os massacres e pilhagens na Terra Santa. A massa fanática acompanhava o exército de cavaleiros e era, em sua maioria, um "exército de pobres".
Os heróis para as pessoas de todas as condições sociais eram aqueles que fossem autores de proezas, ou seja, altos feitos esportivos. Os cavaleiros, tão bem descritos por Walter Scott ocupavam lugar cativo no imaginário heróico da Idade Média. Também os santos, sucessores dos mártires dos primeiros tempos, eram considerados atletas de Cristo e suas proezas, muitas vezes, eram também físicas. Dentre os santos citados por Walter Scott podemos mencionar: São Withold e São Dunstan, Santa Hilda de Whitby. Para o homem da Idade Média, a vida moral é um duelo entre o Bem e o Mal, entre as virtudes e os vícios, entre a alma e o corpo.
Preocupado em defender Jerusalém dos infiéis, o soberano da Inglaterra e da Normandia trata de formar um grande exército e, para isso, cria taxas conhecidas como "Imposto de Saladino", cobrado de quem não podia acompanhar a expedição religiosa-militar, seja por questões de saúde, seja por comodidade.
Ricardo I parte para defender Jerusalém e dá início à Terceira Cruzada. Derrotado, Ricardo é preso pelo duque Leopoldo da Áustria que pede um vultoso resgate em troca de sua libertação. Como nos conta Walter Scott, "as condições da nação inglesa eram, nessa época, bastante miseráveis. O Rei Ricardo estava ausente e prisioneiro, em poder do pérfido e cruel Duque d´Áustria" (2003:68). Sua presença na Inglaterra é tida como uma ocasião em que Ricardo não poderia se revelar aos súditos, somente após reunir aqueles considerados fiéis.
"Havia entre as fileiras do Cavaleiro Deserdado, um campeão que usava uma armadura negra e montava um cavalo também negro, grande e, segundo todas as aparências, tão forte e possante como o cavaleiro que o montava". (2003:127) Esse cavaleiro ganhou o nome de "Negro Preguiçoso" e era nada mais nada menos que o próprio Rei Ricardo!!! E o "Cavaleiro Deserdado" era Wilfred de Ivanhoé, filho de Cedric de Rotherwood, nobre saxônio e amigo de Ricardo.
Sobre os judeus, os efeitos das Cruzadas foram mais perceptíveis. As paixões e as tendências que puseram em movimento as massas continuaram a dominar a história judaica nos séculos seguintes. "As Cruzadas influíram sobre a posição política do judeu, sobre sua distribuição geográfica, atividade econômica, formas de expressão literária, até sua vida espiritual" (ROTH, 1963:64). Walter Scott explica que a nobreza tornou-se cada vez mais fortificada em suas propriedades e possuíam bandoleiros a serviço da opressão. Estes eram pagos com empréstimos, "grande somas de dinheiro, com juros enormes, que devoravam as suas propriedades como cancros roedores, difíceis de serem curados, a não ser quando as circunstâncias lhes davam a oportunidade de livrar-se dos mesmos, exercendo sobre seus credores algum ato de extrema violência" (2003:69).
As primeiras crônicas judaicas da Idade Média lançam luz reveladora sobre a "escuridão" que envolvia até então a vida na Europa. São principalmente aquelas que tratam dos sofrimentos dos judeus a partir do período iniciado com a Primeira Cruzada.
Era notório que alguns líderes cruzados tinham jurado que o sangue de Cristo seria vingado pelo sangue dos judeus. Era crença corrente que o assassínio de um judeu serviria para garantir o perdão de todos os pecados e o indulto do purgatório.
Com a Terceira Cruzada, os ataques contra judeus chegaram à Inglaterra, até então imune e refúgio para os que se viam expulsos do continente. Enquanto Ricardo I era coroado em Westminster e a 3 de setembro de 1189, teve início um movimento violento que culminou na pilhagem dos bens dos judeus de Londres e na morte de muitos deles; o vandalismo estendeu-se noite adentro e no dia seguinte à luz de casas que se incendiaram. Na primavera seguinte, o exemplo foi seguido em todo o país, tão logo o rei cruzou o Canal da Mancha. Norwich, Bury, Lynn, Dunstable, Stamford – todas estas cidades colocaram seus nomes, em letras de sangue, nos livros do martírio judeu. O ponto culminante foi em York, onde depois de um ataque preliminar, os judeus buscaram abrigo no castelo e resistiram durante algum tempo a um verdadeiro assédio. Finalmente, percebendo que não havia possibilidade de salvação, decidiram privar seus inimigos ao menos do prazer do massacre. Liderados pelo rabi, todos os chefes de família mataram suas esposas e filhos, e uns aos outros em seguida. Quando, na manhã seguinte – o Grande Sábado que precede Pessach, 17 de março, de acordo com os cálculos atuais – os portões do castelo foram forçados, poucos eram os sobreviventes capazes de narrar a história daquela noite de pesadelo. Segundo Roth,
Vale notar que, neste caso particular, os líderes do movimento eram membros da baixa baronia que tinham transações financeiras com os judeus, e cujo ardor religioso era certamente aumentado – se não até determinado – pelas dívidas monetárias que lhes pesavam (ROTH, 1963:69-70).
Esses massacres não são mencionados no romance Ivanhoé, mas Walter Scott soube ilustrar o imaginário antijudaico inglês.
Imaginário
A cultura da cristandade medieval identifica o bem com a unidade e o mal com a diversidade. O bem vinha dos vizinhos, o mal vinha dos estrangeiros. Assim, os judeus eram associados ao mal. Expulsá-los era uma operação considerada normal e legítima e, dessa forma, os judeus se tornaram eternos errantes. Segundo o historiador Léon Poliakov, "as razões invocadas para as expulsões eram ora de ordem temporal: proteger o povo das usuras judaicas; ora de ordem espiritual: conseguir a graça divina; às vezes eram formuladas de modo preciso e detalhado (...)". (1979:100)
Judeus imaginários são aqueles tidos como os que mataram Jesus. Os homens da Idade Média possuíam uma grande dificuldade de distinguir entre os judeus míticos e os judeus contemporâneos. O ódio antijudaico surge, assim, com toda virulência.
A inumerável gama de epítetos utilizados para descrevê-los já pode fornecer uma ideia dessa tendência: "judeus pérfidos", "ladrões pérfidos", "descendentes pérfidos", "judeus maus e traidores", "judeus perversos", "judeus desleais", "judeus renegados", "nação pérfida e perversa", "pérfida canalha", "pérfidos e malditos aleijões". Dessa maneira, a própria palavra "judeu" é carregada desse sentido pejorativo que consta, ainda, em nossos dias em dicionários de diversas línguas.
O que era um médico? Outrora, essa personagem foi um feiticeiro, detinha o poder augusto e essencial. Um médico era mais ou menos um mágico. A questão que se colocava na Idade Média era a seguinte: sua misteriosa arte de curar lhe era concedida por Deus ou pelo Diabo? No caso dos médicos judeus, era concedida pelo Diabo, como consta em diversos textos canônicos:
Cronologicamente, o primeiro, parece, o Concilio de Béziers de 1246 proibia, sob pena de excomunhão, aos cristãos de recorrer a seus cuidados, 'pois é melhor morrer que dever a vida a um judeu'. Esta proibição é reiterada pelos Concílios de Albi (1254), de Viena (1267), por um parecer da Universidade de Paris (1301) e por numerosos concílios dos séculos XIV e XV (POLIAKOV, 1979:127).
Nesse sentido, o imaginário era de que o médico judeu não curava, mas procurava agravar ainda mais o caso. De outra feita, o médico judeu envenena seu paciente. Poderia ser, também, ciúme profissional: "A faculdade de Medicina de Viena faz saber que a ética particularíssima dos médicos judeus lhes prescreve assassinar um cliente em cada dez; segundo uma versão corrente na Espanha, trata-se de um cliente em cinco" (ROTH, 1979:127).
O médico judeu é associado imageticamente ao usurário, pois ambos dedicam um ataque convergente contra a fortuna e a saúde dos cristãos. Segundo Walter Scott, "um mágico judeu podia ser alvo de ódio igual ao que o povo votava ao usurário judeu, mas não podia ser igualmente desprezado". (2003:272)
Se o imaginário pintava com tintas carregadas o médico judeu, que dirá, então, das mulheres do mesmo ofício. Certamente a história registra algumas doutoras judias muito reputadas, como Sara de Würzburg e Zerlin de Francfort. (1979:129) Walter Scott traça um retrato bastante preciso da atividade médica de Rebecca e sua atuação na comunidade.
Além de exercer as artes da cura, Rebecca também era dona de uma beleza singular. Os encantos de Rebecca chamaram a atenção do templário Brian de Bois-Guilbert, que numa emboscada, tomou prisioneiros também Isaac de York, Ivanhoé - ferido e comitiva.
Na ocasião da emboscada, Rebecca transportava o enfermo e ministrava-lhe seus cuidados médicos. Ao se emprenhar em seu "piedoso propósito" de cuidar de Ivanhoé, Rebecca escuta a indagação de seu pai: "- Pelas barbas de Aarão! E se o jovem morrer? Se morrer sob nossa custódia, seremos acusados de assassínio, e despedaçados pela multidão!"(2003:271)
De acordo com Scott, Rebecca havia aprendido a arte de curar por intermédio dos ensinamentos de Mirian, filha do Rabino Manasses, de Bizâncio. "Rebecca não perdeu tempo em fazer que o ferido fosse levado para a sua residência provisória, pondo-se com as próprias mãos a tratar e curar os ferimentos" (2003:271). Segundo o narrador,
os judeus, tanto homens como mulheres, praticavam a ciência médica em todos os seus ramos, e os monarcas e os poderosos barões da época se entregavam, freqüentemente, aos cuidados de sábios experimentados pertencentes á raça desprezada, quando estavam doentes ou achavam-se feridos. O auxílio dos médicos judeus também era ansiosamente desejado em certas ocasiões, pois prevalecia entre os cristãos a crença de que os rabinos judeus conheciam profundamente as ciências ocultas, principalmente a arte da cabala, que tem o seu nome e origem nos estudos dos sábios de Israel (2003:272).
Ameaçado com a tortura, a fim de pagar uma soma considerável como resgate, Isaac exigiu sua filha, também mantida como refém: "A minha filha é a minha carne e o meu sangue; é mil vezes mais preciosa para mim do que estes membros que a tua crueldade ameaça". (2003:214) Seu algoz exigia, ainda, o resgate: "E tu, judeu, vai pensando no resgate. Não é necessário que eu te diga que tua raça é considerada maldita em toda a cristandade, e, podes estar certo, não podemos suportar a tua presença entre nós". (2003:332)
Enquanto seu pai sofria ameaça de ser grelhado numa masmorra, Rebecca era assediada por seu captor. Chamada carinhosamente de "belo lírio do vale de Baça", "bela flor da Palestina" e "bela rosa de Sharon".  As intenções de Brian ao capturar Rebecca não eram necessariamente "nobres":
_ Casar com uma judia? Despardieux! Nem que fosses a rainha de Sabá! Mas fica sabendo, também, doce filha de Sion, que se o mais cristão dos reis me oferecesse a mais cristã das suas filhas, e a dotasse com o Languedo, eu não poderia casar com ela. É contra meus votos que eu ame qualquer jovem, a não ser par amours, como eu te quero amar. Sou templário. Olha para a cruz da minha santa ordem. (2003:228)
De uma maneira geral, o romance descreve a sociedade castrense, a célula social formada pelos senhores no castelo. Ela agrupava os filhos jovens dos vassalos enviados para servir o senhor e para realizar o aprendizado militar – servindo, também, de reféns quando necessário-, a domesticidade senhorial e todo o grupo de animadores destinado a proporcionar divertimento e prestígio aos feudais. "Posição ambígua a destes menestréis, trouvères e trovadores, obrigados a louvar e enaltecer quem os empregava, sendo estreitamente dependentes do pagamento e dos favores destes senhores" (LEGOFF, 2005: 312). Muitas vezes artista dependente dos caprichos de um guerreiro, intelectual movido por ideais opostos aos da casta feudal, pronto a se fazer acusador de seus senhores.
Na idade Média, a Igreja era mais que foco de vida espiritual comum, era também um lugar de assembléia. Ali se realizavam reuniões, e seus sinos chamavam a comunidade em caso de perigo, notadamente de incêndios; ocorriam conversações, jogos, negócios. Era um centro social com múltiplas funções. Na época, como narra Scott, havia uma quantidade considerável de bandoleiros que "a opressão e a pobreza haviam levado ao desespero" (2003:181) e, juntava-se a esse fato, a "severidade das leis sobre a caça" que havia reduzido ao modo de vida errante e desesperado parte da população pobre da Inglaterra.
Para resgatar as personagens prisioneiras do romance, os camponeses saxônios das aldeias vizinhas e de servos e escravos dos extensos domínios de Cedric reuniram-se para lutar e libertar os prisioneiros. Entretanto, Rebecca continuou prisioneira do cavaleiro Brian de Bois-Guilbert.
Com os judeus, os cristãos mantiveram, ao longo de toda a Idade Média, um diálogo, entrecortado por perseguições e massacres. O judeu usurário, isto é, o insubstituível emprestador, era odiado, mas necessário e útil. O grande motivo da exclusão dos judeus foi a evolução econômica e a dupla formação do mundo feudal e do mundo urbano.
Rebecca, acusada de feitiçaria, pois realizava curas, foi condenada à morte pela Santíssima Ordem do Templo de Sion. Então, "Rebecca, filha de Isaac de York, acusada por grande número de provas mais do que evidentes, de ter feito uso de feitiçaria contra a pessoa de um nobre cavaleiro da nossa santa ordem, laçou um desafio de combate para provar sua inocência" (2003:392)
A prova por excelência da verdade pelo milagre era o julgamento estabelecido pelo próprio Deus. Uma bela fórmula legitimava um dos mais bárbaros costumes da Idade Média: "Deus está do lado do direito". Para que as chances não fossem muito desiguais no plano terrestre, os mais fracos, e em particular as mulheres, eram autorizados a se fazer representar por um campeão – havia profissionais, que eram condenados pelos moralistas como os piores mercenários – que se submetia à prova em seu lugar.
O julgamento por combate foi solicitado por Rebecca. Os Templários, apesar de a considerarem judia, estrangeira e feiticeira aceitaram a proposta, afinal, eram cavaleiros e também soldados, além de homens de religião que não se furtariam a um combate.
O ordálio era uma espécie de justiça imanente, baseada na crença de que a vontade divina se manifestaria no julgamento de indivíduos que se submetessem a provas físicas como combate singular ou duelo judiciário, prova do ferro em brasa ou da água fervente. Se o campeão sucumbisse no combate pelo julgamento de Deus, Rebecca morreria como feiticeira, de acordo com a condenação do tribunal dos Templários. Assim, Rebecca, um figura pálida, caminhou com passos lentos, mas firmes, em direção ao lugar onde ia decidir-se a sua sorte. Sua luva foi o penhor do combate.
Walter Scott narrou as vicissitudes dos judeus na Inglaterra e criou um romance histórico de sucesso. Sua obra foi traduzida para diversas línguas e, também, foi traduzida para o cinema com grande êxito. Seus personagens judeus encarnam, a imagem do "outro", pouco conhecido, mas temido e evitado. Os estrangeiros em sua obra formam uma amostragem da diversidade cultural que pode ser vislumbrada na descrição dos trajes, costumes, culinária e conhecimentos. Este "outro", que é temido, é, também admirado, porque incita a pensar e a tecer a trama de uma identidade nacional – seja ela normanda ou saxônia.
É no "outro" que as massas projetam aspectos negativos de sua realidade. E é também nesse outro sobre e sob toda e qualquer lei que também são imputados assassinatos rituais e malefícios. O romance Ivanhoé consegue demarcar a construção da diferença e apontar para as conseqüências em voga na época: expulsão, segregação ou convivência regrada. Nesse sentido, o romance consegue prender a atenção do leitor numa trama instigante e, ao mesmo tempo, apontar para aspectos importantes da convivência entre judeus e não-judeus na Inglaterra medieval.

Ethel Mizrahy Cuperschmid é Mestre e Doutora em História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente coordena o Centro de Memória da Medicina da Faculdade de Medicina UFMG.
Referências
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medievalTrad. José Rivair de Macedo. Bauru; SP: Edusc, 2005.POLIAKOV, Leon. De cristo aos judeus da corte. História do anti-semitismo I. Trad. Jair Korn e J. Ginsburg. São Paulo: Perspectiva, 1979. ROTH, Cecil. Pequena história do povo judeu. Segundo Volume. Diáspora – 425-1492. Trad. Enanuele Corinaldi. São Paulo: Congregação Israelita Paulista; Fundação Fritz Pinkuss, 1963. SCOTT, Walter. IvanhoéTrad. Roberto Nunes Whitaker. São Paulo: Nova Cultural, 2003. YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica. Trad. Lina G. Ferreira da Silva.  Rio de Janeiro: Imago, 1992.
© Copyright 2007Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG - ISSN: 1982-3053

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